Artigo sobre: MOVIMENTOS SOCIAIS E A IMPLANTAÇÃO DO ENSINO MÉDIO EM SOBRADINHO-BAHIA


OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A IMPLANTAÇÃO DO ENSINO MÉDIO EM SOBRADINHO – BA

Ducilene Soares Silva Kestering[1]
Telma Balbino de Lima[2]
Tereza Cristina de Souza[3]
Zaira Pereira [4]

RESUMO

Com a oferta de emprego para a construção da Barragem de Sobradinho, na década de 1970, a Companhia Hidroelétrica do São Francisco - CHESF, fomentou a vinda de muitas famílias de trabalhadores para Sobradinho, então povoado do município de Juazeiro – BA. Para viabilizar a estadia dos operários, ofereceu a eles e às suas famílias, atendimento hospitalar e educacional gratuito. Concluídos os trabalhos de construção da barragem, surgiram problemas de ordem social e educacional, resolvidos com a participação efetiva da população em movimentos sociais. Isso possibilitou ao povoado a implantação de escolas públicas. A inexistência de escolas de Ensino Médio era um agravante que mobilizou a classe estudantil, as associações agrícolas e a Pastoral da Juventude do Meio Popular. Incentivados pela necessidade e pela conscientização, os trabalhadores uniram forças e conseguiram implantá-lo em Sobradinho. As conquistas ocorreram pela conscientização, organização social e política. As lutas sociais promoveram e consolidaram uma sociedade mais humanizada, consciente, justa e democrática. A cidadania fez-se presente com o aprimoramento da ética, da intelectualidade e do senso crítico.

PALAVRAS CHAVE: Educação. Ensino Médio. Movimentos sociais. Cidadania

ABSTRACT

With jobs for the construction of the dam Sobradinho, in the 1970s, the Hydroelectric Company of San Francisco - CHESF fostered the coming of many working families to Sobradinho, then the town Juazeiro - BA. To make the stay of the workers, offered them and their families, hospital care and free education. Completion of the work of building the dam, problems in social and educational resolved with the participation of the population in social movements. This enabled the deployment of the village schools. The lack of Secondary Education was an aggravating factor that mobilized the student class, the agricultural associations and the Ministry of the Environment Youth People. Encouraged by the need and awareness, workers joined forces and managed to deploy it in Sobradinho. The gains occurred for awareness, social and political organization. The social struggles promoted and consolidated a society more humane, conscientious, fair and democratic. Citizenship presented itself to the improvement of ethics, intellect and critical thinking.

KEYWORDS: Education. Secondary Education. Social movements. Citizenship


INTRODUÇÃO

O município de Sobradinho-BA localiza-se no extremo norte da Bahia, nas coordenadas 24 L 301496, UMTN 8592274, a 383 metros de altitude. Sua população, em 2010, era de 21.988 habitantes. Ocupa uma área de 509 km², no território da antiga Fazenda Tatauí, onde o padre Antônio Pereira, tio e sócio de Garcia D’Ávila, em 1659, adquiriu uma sesmaria  junto à Coroa Portuguesa para criar gado solto na caatinga. Dista 554 km de Salvador e 42 km da cidade de Juazeiro - BA. Limita-se ao norte com o município de Casa Nova e com o Estado de Pernambuco; ao sul com o município de Campo Formoso; a leste com o município de Juazeiro e a oeste com o município de Sento Sé.
Inscrições rupestres, localizadas na em sítios arqueológicos da Serra do Olho D’água, território do atual município de Sobradinho, comprovam que a região foi habitada por grupos pré-históricos desde o final do Pleistoceno, há mais de nove mil anos. O Rio São Francisco, denominado pelos índios de Opará, era rota migratória e fonte de alimento desses grupos. Há registros históricos de que, na região de Sobradinho onde estão sendo feitas pesquisas arqueológicas, havia muitos grupos indígenas quando os colonizadores portugueses iniciaram a implantação de latifúndios para a criação extensiva de gado.
Segundo a tradição oral, a Fazenda Tatauí, território do atual município de Sobradinho, era ocupada pelos índios os Tamoquim cuja aldeia situava-se junto a um serrote que havia onde hoje está edificada a Vila São Francisco. Antigos moradores da região afirmam que o lugar era conhecido como Serrote da Aldeia. Esta feição de relevo foi destruída pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco, quando iniciou a construção da Barragem de Sobradinho, descaracterizando a paisagem original. Kestering (2011, p. 11) refere-se ao referido serrote:
 Segundo a tradição oral, aos pés da cachoeira de Sobradinho, no Serrote da Aldeia, hoje Vila São Francisco, residia a tribo Tamoquim. Os índios Tamoquim eram possíveis remanescentes de grupos humanos pré-histórico, que deixaram impressos, nas serras próximas, muitos painéis de pintura rupestre (...)
Lamentavelmente, em nome do progresso, ao longo dos anos, das décadas e dos séculos, destrói-se o patrimônio natural com que se relacionaram os grupos pré-históricos com atributos, instrumentos e estruturas da sua cultura. Junto com a descaracterização do patrimônio natural destrói-se boa parte do patrimônio cultural pré-histórico e histórico. Kestering (2003, p. 52), lastima a perda irreparável do patrimônio cultural pré-histórico, principalmente os painéis de pintura rupestre:
(...) que se encontram ameaçados pelo vandalismo destruidor da cultura extrativista implantada na região do Submédio São Francisco, desde meados do século XVIII. Não convém que se deixe perder a identidade cultural dos grupos étnicos que, na pré-história, expressavam seus sentimentos com sinais cujo significado perdeu-se no tempo.
(...) Á cultura do couro, implantada pela criação extensiva de gado e caracterizada pelo total desrespeito à civilização autóctone regional sucedeu-se a da agricultura irrigada que continua ameaçando o equilíbrio dos ecossistemas e a conservação dos patrimônio cultural que sobreviveram ao genocídio colonialista europeu.
Ainda, segundo Kestering (2011, p. 10):
Os grupos pré-históricos caracterizavam-se pela mobilidade sazonal. Subiam e desciam o Opara para fixar-se, por algum tempo, onde fossem fartas a caça e a pesca. Sobradinho era um desses lugares que a natureza privilegiara. Aos pés da cachoeira, apinhavam-se os peixes para a desova, na época da piracema e, na grande lagoa marginal da foz do Riacho Tatauí, tornavam-se presa fácil nos meses em que o rio vazava.
   A história da antiga Fazenda Tatauí imiscui-se na história do Submédio São Francisco, cenário de conflitos que relegaram ao índio sobrevivente a condição de vaqueiro ou de escravo. Aldeados na antiga Missão de São Gonzalo, junto à foz do Rio Salitre, onde hoje existe o povoado homônimo, os índios foram catequizados. Ali, na missão, aprenderam a negar sua identidade. Kestering (2011, p. 11) registra:      
No início do século XVII, Francisco Garcia D’Ávila introduziu, no Vale do São Francisco, os primeiros currais que deram origem aos povoados ribeirinhos. Iniciava-se assim a exploração econômica de um grande latifúndio do qual Sobradinho fazia parte. Francisco Garcia D’Ávila prosperou, construindo mais tarde, a Torre de São Pedro Rates.
(...) os índios Tamoquim (...) aprenderam a arte de criar gado e ensinaram os colonizadores portugueses a enfrentar as durezas da vida no sertão nordestino. Essa aproximação fomentou o surgimento de casamentos entre índios, negros e portugueses, gerando os destemidos vaqueiros que fizeram prosperar a fazenda Tatauí. Nela criou-se gado solto na caatinga, caçou-se pequenos animais nas chapadas, pescou-se no caudaloso Rio São Francisco e plantou-se culturas de subsistência quando ele vazava.
Em 1971, deu-se início à obra de construção da barragem com o objetivo de regularizar a vazão do Rio São Francisco para a geração constante de energia elétrica nas usinas instaladas à jusante. Este empreendimento atraiu grande contingente de pessoas do próprio Vale do São Francisco e de vários estados nordestinos que se assentou no local onde hoje está implantada a Vila São Joaquim. Esses migrantes de todo o Nordeste ali se aglomeraram em construções precárias, compostas por barracos de papelão, folhas de flandres e taipa.
Concluídos os diques, com média de 41 m de altura e 13 km de extensão represou-se o Velho Chico, em 1977. Foi necessário o deslocamento de 11.838 famílias, com um total de 72.000 mil pessoas. A área inundada atingiu os municípios de Casa Nova, Remanso, Sento Sé, Pilão Arcado e Xiquexique. Parte dessas pessoas afetadas instalou-se na Vila São Joaquim conhecida como “Cai Duro”, haja vista o elevado índice de assassinato ocorrido ao longo desse período.

1             OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A IMPLANTAÇÃO DO ENSINO MÉDIO

A Companhia Hidroelétrica do Vale do São Francisco – CHESF passou a manter somente a educação infantil, o ensino fundamental e a saúde. Cabe registrar que, preliminarmente, ao tempo em que a CHESF, em nome do progresso, gerava um problema social, oferecia aos filhos dos barrageiros uma educação de qualidade, referência para toda região, pela excelência dos serviços prestados. Educadores de todo o Brasil fixaram-se em Sobradinho e, apesar da vigência da ditadura militar, esmeraram-se na formação de uma juventude crítica e consciente do seu papel de agentes de transformação social. Nas fendas do sistema plantavam a semente da sociedade que sonhavam. Além disso, não se pode deixar de reconhecer que a CHESF era mantenedora de um hospital, com excelentes médicos, bons equipamentos e um centro cirúrgico para atendimento da população local e circunvizinha.
Findas as obras de construção da barragem, começaram a ocorrer problemas vinculados à educação. A CHESF não se ocupou mais em manter a educação no povoado que surgira pela afluência de trabalhadores de várias regiões do país. Dessa forma, não havia outro caminho que não fosse o da celebração de convênios entre ela e a Secretaria da Educação do Estado da Bahia. Esses convênios viabilizaram  a implantação da escola pública de ensino fundamental em Sobradinho que era, então, o maior povoado do município de Juazeiro - BA
Ademais, a inexistência do ensino médio na localidade preocupava a população. A sua implantação passou a ser uma exigência imperiosa e urgente para a classe estudantil que concluía o ensino fundamental. Essa classe deslocava-se às cidades de Juazeiro - BA e Petrolina - PE em busca de concluir a educação básica. Tornava-se necessário unir forças no sentido de possibilitar à classe estudantil o acesso ao ensino médio, pois os mesmos encontravam-se alijados da escolarização por falta de condições financeiras.
Kuenzer (2002, p. 43) ressalva:
É sempre bom lembrar que o Ensino Médio no Brasil tem exercido, entre outras, a função de referendar a inclusão dos incluídos, justificada pelos resultados escolares. Na verdade, os incluídos vivenciam um conjunto de experiências sociais e culturais que lhes assegura larga vantagem na relação com o conhecimento sistematizado, isso sem falar nas condições materiais favoráveis ao estabelecimento dessa relação. Assim é que, não por coincidência, os que  permanecem na escola são também os que melhor se comunicam, têm melhor aparência, dominam mais conhecimentos e apresentam condutas mais adequadas ao disciplinamento exigido pela vida escolar, produtiva e social.
Ao longo desse processo, a consciência de organização popular, surgiu, em Sobradinho, vinculada a várias necessidades de uma grande massa oprimida pela ditadura militar então vigente. Os movimentos sociais tiveram papel importante na solução dos problemas de educação, de saúde e de sobrevivência da população.
Segundo Tauraine (ano) apud Picoloto (2007, p. 161-162)
Os movimentos sociais [são] a ação conflitante de agentes de classes sociais lutando pelo controle de ação histórica. E como função “os movimentos sociais devem servir de mediadores entre o sujeito e o Estado. Os movimentos sociais têm o papel de desenvolverem sujeitos livres e autônomos, por um lado, e construírem as mediações necessárias entre Estado e os indivíduos, por outro lado, ou seja, é fundamentalmente de responsabilidades destes a construção da democracia e a garantia do direito à diferença.
Era esse o desafio colocado ao povoado de Sobradinho. Desencadeou-se o surgimento de movimentos estudantis que buscaram alternativas viáveis para ingressarem no ensino médio, in loco. O ímpeto de transformação surgiu da necessidade de sobrevivência do povo da Terra da Barragem. Eram grandes as mazelas sociais do período pós-barragem. Sobradinho não tinha nenhuma alternativa planejada para garantir vida digna aos ex-barrageiros e remanescentes da antiga Fazenda Tatauí. Não havia uma política definida para a auto-sustentação da grande massa explorada como mão de obra na construção da barragem.
Imbuída da resistência, coragem e teimosia a população deste pedacinho do sertão nordestino, organizou-se em mais de vinte associações agrícolas formadas por vários segmentos sociais. Começava aí um capítulo da luta de seu povo pela libertação da situação de opressão em que vivia.

2          REFLEXÕES TEÓRICAS

Foi a ênfase dada à luta pela sobrevivência e pela educação básica que uniu os segmentos organizados da sociedade civil em torno de um direito garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil no seu artigo 205. Assim reza a constituição:  “A educação, direito de todos e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Demo (1990, p. 14) lembra que, em qualquer ação da sociedade civil organizada,
 (...) apanha-se o significado da educação continuada, como alavanca indispensável de processos emancipatórios, na sua face política. Poderia passar pela exigência de investimento constante e ilimitado na competência da população, para que seja possível o projeto próprio de desenvolvimento.
Freire (1979, p. 17) também  reporta-se a isso quando afirma:
O desenvolvimento de uma consciência crítica que permite ao homem transformar a realidade se faz cada vez mais urgente. Na medida em que os homens, dentro da sua sociedade, vão respondendo aos desafios do mundo, vão temporalizando os espaços geográficos e vão fazendo história pela sua própria atividade criadora.
Assim, em Sobradinho, instituía-se uma situação singularizada pela homogeneidade, em que as classes sociais envolvidas no processo reivindicatório, desnudaram-se de suas ideologias em prol de um projeto coletivo. A esse respeito Demo, (1990, p. 14)  expõe suas reflexões enfatizando:
(...) busca -se caracterizar caminhos factíveis de superação histórica, delineando aí o papel da educação, que então, aparece como “transformadora” sob inspiração gramsciana. Deixando de lado  aprofundamentos maiores, tomamos aqui apenas o conceito de contraideologia, porque pode propor dimensão dialética apropriada da questão.
Este é o desafio colocado por Freire, (2003, p. 53):
Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando assim, sua “convivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível plenamente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associado a sério empenho de reflexão, para que seja práxis.
A organização dos atores envolvidos no processo de permanência na Terra da Barragem resultou na consciência social e política da massa. Procedia-se, em 1985, a conquista de  um anexo do  Ensino Médio do Colégio Municipal Paulo VI – Juazeiro – Bahia, em Sobradinho. Essa conquista implicaria, inevitavelmente, em  inúmeros problemas concernentes ao funcionamento do curso: espaço físico, professores, funcionários, material didático, mobiliários etc. Fazia-se necessário criar uma estrutura administrativa e financeira, formar quadros, negociar prioridades com a população, construir políticas educacionais que revelassem conhecimento dos problemas e articular a parceria das diferentes instituições para atender à classe estudantil. Diante dessa tarefa gigantesca, faz-se mister ressalvar que, o proletariado e seus filhos, não desanimavam, trabalhavam nas lavouras, em terras ocupadas, escreviam a sua história e participavam da vida nacional.
A luta pela implantação do Ensino Médio, em Sobradinho, acontecia conforme preconizava Freire (1981, p. 61):
Porque assim é, a educação a ser praticada pela liderança revolucionária se faz com co-intencionalidade. Educador e educando (liderança e massas), co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que, ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento. Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes. Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudo-participação, é o que deve ser: engajamento.
O engajamento proposto por Freire tornou-se cada vez mais consistente e contagiante em Sobradinho. As associações agrícolas, as associações  estudantis, a Pastoral da Juventude do Meio Popular e o Centro Educacional de Sobradinho – CES influenciaram positivamente na formação de intelectuais orgânicos. De comum acordo estão os pressupostos de Freire, Demo e Semeraro quando se reportam ao conceito de intelectual orgânico proposto por Gramsci.
Assim pensava Gransci (1975, p. 1518 apud Semeraro (2006, p. 377-378): “Orgânicos, ao contrário, são os intelectuais que fazem parte de um organismo vivo e em expansão”. Equivale isto a dizer que, como Gramsci apresenta, as organizações populares da Terra da Barragem, construíram um consenso em torno de um projeto coletivo para garantir a permanência dos ex-barrageiros em Sobradinho.
São orgânicos os intelectuais que, além de especialistas na sua profissão, que os vincula profundamente ao modo de produção do seu tempo, elaboram uma concepção ético-político que os habilita a exercer funções culturais, educativas e organizativas para assegurar a hegemonia social e o domínio estatal da classe que representam (GRAMSCI, 1975, p.1518 apud Semeraro, 2006, p. 377-378).
Conscientes do seu papel na transformação de uma situação de opressão e, cansados do descaso dos intelectuais convencionais, as organizações populares de Sobradinho, através das suas reivindicações, consolidaram, também, a sua emancipação política. Dessa forma, pelo plebiscito, Sobradinho tornou-se politicamente independente do município de Juazeiro - BA, no dia 24 de fevereiro de 1989, por força da Lei Estadual n° 4843, publicada no Diário Oficial da Bahia, em 25 de fevereiro do mesmo ano.
As práticas dos componentes das instituições organizadas da cidade recém-emancipada tomavam corpo. A herança de uma educação de excelência deixada pela CHESF passou a ser a alavanca que desencadearia o processo de formação ética, política e social dos habitantes dessa cidade. Era o resultado do que dizia Gramsci (1975 apud Semeraro 2006, p. 378): “a organicidade dos novos intelectuais está relacionada principalmente a sua profunda vinculação à cultura, à história e à política das classes subalternas que se organizam para construir uma nova civilização”. Alinhando-se a este viés de pensamento, as organizações populares garantiram o êxito de seu ambicioso projeto coletivo.
Na luta pela emancipação política, Sobradinho escreveu mais uma página da sua história. Mostrou, na prática, a sua formação ética, política, organizacional e consciente de seu papel na transformação de uma sociedade injustiçada, oprimida e violentada pela força da ditadura que, em nome do progresso impunha a violência dos opressores. Contrariando o positivismo de Comte, a cidade de Sobradinho, ao fazer ciência, não se posicionou neutra. Revelou-se num compromisso com as mudanças sociais, na forma como queria Gramsci.
Com Marx e Engels (1845, p. 7) pode-se dizer que:
(...) o movimento de emancipação real se dá ao longo da história, em meio às suas contradições, não sendo, portanto, uma “emancipação espiritual”. Não é “liberdade do espírito”, mas conquista contínua do espaço material da vida e da liberdade, de possibilidade e de fruição. Esta “emancipação e liberdade do espírito” (entendido aqui como subjetividade humana) das agruras, misérias, injustiças e exploração. Essa, ao nosso entender, configura-se como a base principal do materialismo histórico, que adveio de intenso processo intelectual e político demarcado a partir da elaboração.
Ancorado nesse princípio, Demo (1990, p. 19-20) alimenta-se dos princípios do materialismo histórico de Marx. Afirma:
Por educação política toma-se, de modo geral, a perspectiva através da qual se obtém a maneira mais sólida de “valorizar” Educação na sociedade. Para começar, define-se Educação como sendo intrinsecamente ato e atitude política, mais do que referência técnica ou relação de autoridade instrutiva.
A educação em Sobradinho estava relacionada com as necessidades econômicas de seu povo. A educação política não se restringia apenas à escolarização. Tudo estava aliado a um projeto político coletivo. Havia, em consequência da educação e da participação, a inserção de atores sociais nos movimentos de base. Em decorrência disso, não havia dois momentos: o da aprendizagem e da aplicação desta. A educação constituía-se com a cidadania. As lideranças de agricultores e de estudantes interagiam no processo de luta, transformando e formando-se. Os atores sociais desse processo elaboravam uma política pública. Esta fundamentava-se na incessante busca coletiva de soluções. Ela apagava as diferenças entre conhecimento e aplicação deste, entre o que se pensa e o que se executa. Articulava-se a teoria e prática. A esse respeito ratifica Demo (1990, p. 21): “Não há como “substituir” a iniciativa própria de quem pretende emancipar-se. Ninguém emancipa ninguém, a não ser que este alguém se emancipe”.
As lideranças das associações agrícolas e estudantis assumiram a função de educadores. Desempenharam o papel de incentivar, motivar e apoiar os menos favorecidos. Para cada dificuldade encontrada pela população, havia uma tomada de posição e enfrentamento consciente e competente. A cidade emancipou-se gradativamente, num momento da história em que o entorno permanecia no anonimato do analfabetismo “literal” e político. Deixou de ser massa de manobra da CHESF e dos políticos que davam sustentação ao modelo político da ditadura militar. Como sujeito social não se acomodou e nem se entregou à sorte ou ao destino. Enfrentou, conscientemente, a injustiça social e construiu, ela mesma, as soluções para o enfrentamento da pobreza provocada pelo desemprego da pós-barragem.
Os habitantes de Sobradinho - BA recuperaram a cidadania. Esta passou a  por ser um valor coletivo reconhecido, um senso de pertencimento. Antes do processo de emancipação, a cidade era habitada por uma “enciclopédia” de pessoas que não se sentiam pertencentes a ela. Sentiam-se hóspedes de uma terra que lhes acolhera em função das obras de construção de uma barragem planejada por outros. Porém a necessidade econômica da polis era a condição para conquistar os direitos básicos de seus moradores. Hoje, as pessoas da Terra da Barragem sabem que a cidadania era e continuará sendo a única condição para conquistar mais direitos e assegurar os que já existem.
Sobre esse processo afirma Demo (1990, p. 21):
(...) Tudo começa com a descoberta própria, consciente das condições concretas de existência e das circunstâncias que nos cercam, ou, em outra linguagem, com a leitura crítica da realidade. Mais que superar o analfabetismo literal, é fundamental superar o analfabetismo político, que é a marca da massa de manobra. Tomando consciência crítica disso, principia o primeiro passo para a constituição do sujeito social, que, de objeto das definições impostas de fora para dentro, passa a querer definir-se. Descobre, entre outras coisas, que pobreza não é um dado encontrado, uma sina, um mau jeito, uma vontade divina, mas resultados forjado no contexto  de uma história concreta, portanto uma injustiça social. 
Em Sobradinho, os direitos  foram conquistados, com muitas lutas sociais, reivindicações e vidas ceifadas, na abertura democrática em nosso Brasil após o regime militar de 1964. A Constituição de l988 foi uma grande referência. Ela representa uma vitória das lutas sociais no país. Ela garantiu ao cidadão de Sobradinho o direito à participação na vida política e foi, com base nela, que se consolidaram os movimentos sociais “agrícolas e estudantis”. Esses movimentos foram mediados por uma educação de referência, herança do período em que a CHESF implantou um bom sistema de educação. Os educandos fizeram-se políticos e sociais. Evoluíam historicamente no confronto entre opressores e oprimidos.
A vida distrital de abandono em que viveu Sobradinho determinou a consciência dos que aqui permaneceram. A história de luta pela sobrevivência dos ex-barrageiros e remanescentes está e sempre estará ligada ao mundo material, organizado por essa sociedade crítica, atuante e consciente. Os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais são essenciais à vida do cidadão. O cidadão pleno é o que se apossa de todos esses direitos, o cidadão incompleto é o que possui apenas parte deles. A cidadania efetivada para todos requer que o ensino volte-se para a sua função social. Sabe-se que a escola, desde a Antiguidade, tem desempenhado uma função essencial nas sociedades.
A democracia é regida por dois princípios básicos: a auto-construção e o projeto ético da democracia. A solução para os problemas sociais de Sobradinho esteve diretamente associada ao comprometimento dos cidadãos com estes princípios norteadores.
O ensino médio foi de importância basilar. Como uma política estratégica, fabricou uma sociedade mais humanizada, consciente, justa e um estado democrático de direito forte e consolidado pelas lutas de classes. A cidadania fez-se acontecer por força do aprimoramento ético, intelectual e do senso crítico consolidados na etapa final da educação básica.
Pode-se constatar que o referencial teórico de Paulo Freire adentrou na vida dos ex-barrageiros e seus remanescentes pela educação como política da liberdade. Essa mesmo referencial encontra-se relacionado com os marxistas Gramsci e Habermas. Freire propõe a subjetividade como condição para a revolução da transformação social. Inspira-se no marxismo ortodoxo que também defende a subjetividade como a base da conscientização. Os sujeitos agem conscientes na história. São sujeitos históricos organizados. Freire ratifica que o socialismo é uma utopia e que, por isso, precisa ser renovado pela educação.
Nesse contexto, pode-se afirmar que a educação em Sobradinho trilhou o caminho ético-político. Uma prática libertadora cristã e ao mesmo tempo marxista. Pela educação básica, os partícipes das lutas em Sobradinho, passaram a ter o direito de sonhar, realizar projetos, decidir sobre o destino da polis. Assim pensavam Marx e Freire. Essa educação teve importante papel na transformação social.

REFERÊNCIAS
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______ Educação e Mudança. 12 ed. São Paulo: Paz e Terra. 1979.

______ . 1981

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GRAMSCI, Antônio. 1971.

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KESTERING, Celito. Estratégias de Conservação das Pinturas Rupestres do Boqueirão do Riacho São Gonçalo, em Sobradinho - BA. CLIO. Série Arqueológica (UFPE). Recife – PE. v. 1, n. 16, p. 49-66. 2003.

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PICOLOTTO, Everton Lazzaretti. Movimentos Sociais: Abordagens Clássicas e contemporâneas. Ano I, Ed. 2. Revista Eletrônica de Ciências Sociais. 2007.

SEMERARO, Giovanni. Intelectuais “Orgânicos” em tempos de Pós-Modernidade. Cad. Cedes, Campina, vol. 26, n. 70, p. 373-391. 2006.



[1] Professora licenciada em Letras pela Faculdade de Formação de Professores de Petrolina – UPE/FFPP e especialista em Psicopedagogia pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão – IBPEX.
[2] Professora licenciada em Geografia pela Faculdade de Formação de Professores de Petrolina – UPE/FFPP e especialista em Psicopedagogia pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão – IBPEX.
[3] Professora licenciada em Biologia e especialista em Programação do Ensino de Biologia pela Faculdade de Formação de Professores de Petrolina – UPE/FFPP.
[4] Professora licenciada em Letras pela Faculdade de Formação de Professores de Petrolina – UPE/FFPP e especialista em Psicopedagogia pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão – IBPEX. 

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